A construção de personagens que parecem reais exige intenção, estratégia e um detalhamento prévio que irá guiar as ações durante a escrita.
O desenvolvimento dos personagens é um dos pilares de uma história de ficção. Se esta parte não for pensada de forma estratégica e com profundidade, o autor corre o risco de acabar com uma obra superficial, sem poder de envolver o leitor emocionalmente ou de sustentar a leitura do livro até o fim.
Muitas pessoas acreditam no mito do personagem que ganha vida sozinho. O autor iniciante muitas vezes cai na tentação de começar a escrever o livro tendo apenas uma noção básica dos protagonistas. As personalidades, interesses, objetivos e questões pessoais não foram definidas e, ao tentar criar tudo isso na hora, é muito fácil acabar com inconsistências ou ficar preso na superficialidade.
Vamos entender um pouco mais a fundo como isto funciona. Eu posso criar a personagem “Maria”, uma jovem ingênua que vive no campo e vai para a cidade trabalhar de babá na casa de uma família. Isto é tudo o que eu sei sobre Maria antes de escrever o meu livro. Aí no primeiro capítulo eu apresento Maria como uma menina tímida e sonhadora, que pretende juntar dinheiro trabalhando como babá para pagar seus estudos.
Até aí tudo bem, eu inventei isto na hora, dei um objetivo e algumas características pessoais para a minha personagem até então vazia. O problema é que a história irá trilhar um caminho durante vários capítulos e muitas páginas e nem eu mesma sei direito quem Maria é e como não tenho clareza da minha própria personagem, não vai demorar para eu passar isto ao leitor.
Lá no capítulo três, Maria faz três amigas no bairro. Ela vê as garotas na sorveteria, reconhece uma como sobrinha da dona da casa onde trabalha e pergunta proativamente se pode sentar junto com elas. Maria sorri o tempo todo e faz amizade fácil, se sente à vontade na companhia das garotas e na semana seguinte, combina de ir em uma festa na casa de uma delas.
Só que no primeiro capítulo eu apresentei a minha personagem como uma jovem tímida. E lá no capítulo três, Maria toma iniciativa de fazer as amizades. E então no capítulo 5, quando ela está na festa, Maria toma todas, se envolve com um rapaz e acabam passando a noite juntos. Só que a Maria que eu apresentei no início do livro era inocente e responsável. Você consegue perceber como é muito fácil criar incoerências com um personagem se você não tiver clareza sobre quem ele é antes de escrever?
A partir disso, vamos falar sobre esses erros tão recorrentes na criação e construção de personagens, que são frutos da falta de clareza do autor, planejamento e intencionalidade ao desenvolver a obra como um todo.
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1. Personagem não ganha vida sozinho
Preciso voltar neste ponto aqui por um motivo: trazer clareza para você sobre isto. Como no exemplo citado acima, se você for o autor desta história e ver a sua Maria trabalhando de babá, fazendo amigas na sorveteria, bebendo e arrumando um peguete na festa, você, como autor da sua criação que age tão ativamente, irá concluir que a personagem ganhou vida.
É muito fácil acreditar nisso. Você pode pensar em um nome e mais nada e começar a escrever agora, os seus dedos vão digitar o que o seu cérebro inventar na hora. Profissão, características, expressão nos diálogos. E por mais que você acabe com um personagem vazio e raso, com personalidade e ações contraditórias, sem elementos fortes que o deixem realistas, você vai concluir pelo andar dos capítulos que o seu personagem ganhou vida sozinho e está tudo bem.
É difícil se dar conta dos problemas quando você mesmo está criando e por isso muitos autores acabam presos nessas armadilhas. Mas quando uma pessoa diferente de você ler a história, vai ficar muito claro que o personagem é inconsistente. Como não há clareza na construção, o leitor não vai ter clareza na imaginação, não saberá descrever ao certo quem é o seu personagem e vai seguir a leitura sem grande envolvimento emocional. Se os personagens não convencem e não cativam, o leitor fica desconectado da história.
2. Personagens não devem ser perfeitos
Há outra questão quando pensamos em criar uma história de ficção pela primeira vez na vida. Muitos pensam em um protagonista que é o galã do cinema ou uma mocinha que é a bondade, pureza e o amor em pessoa. Aí tudo o que o seu herói diz e faz é bonito, ele está sempre certo, ele agrada todo mundo, ele é lindo e irresistível.
Isto traz uma certa artificialidade para a história. Seus personagens não parecem muito humanos quando são perfeitos demais. As pessoas se identificam com personagens imperfeitos, com defeitos e questões pessoais que são como elas, como nós, como todo mundo. O seu personagem precisa de pelo menos uma questão essencial, uma ferida interna dentro dele, algo mal resolvido. Se você tiver isso, com certeza se livrará do risco da perfeição.
3. Não dar tempo ao tempo
Em uma obra de ficção, a vida e as interações entre os personagens são construídas ao longo de páginas que simulam uma passagem de tempo. Essa passagem precisa ser respeitada se você quer que os seus personagens convençam e suas atitudes sejam coerentes. O maior problema geralmente acontece quando há amor envolvido.
Por exemplo, você faz os seus personagens se conhecerem em um parque e trocar algumas palavras. Aí na segunda vez que o garoto vê a menina no parque ele pensa algo do tipo: “minha vontade era de tê-la nos meus braços, protegê-la de todo o mal ainda que a minha vida estivesse em risco”.
Veja bem, na vida real, se você arrumar um crush no parque, você talvez solte um sorrisinho quando ver de novo na semana seguinte, no mesmo lugar, durante a sua caminhada rotineira. Você nem sequer vai estar apaixonado neste momento. Interessado em conversar, trocar contato, talvez sim. Mas nada muito além disso. Quando as coisas acontecem muito rápido na ficção, o comportamento dos seus personagens não soam verdadeiros e surge um ruído em suas construções.
Conselho final para a construção de personagens
Aprofundar os personagens é essencial antes de começar a escrever, mas durante o processo da escrita, tente imaginar as cenas acontecendo na vida real. Se pergunte se as lacunas de tempo estão boas, se aquela reação seria verídica caso acontecesse de verdade. Se o seu personagem não está exagerando, tomando uma atitude incoerente, dando um tiro no próprio pé em uma situação em que ele provavelmente buscaria se proteger (se fosse na vida real).
É claro que você irá precisar que as coisas aconteçam de uma determinada forma para levar a história adiante e chegar onde você quer chegar na trama. Mas em vez de escolher os caminhos mais rápidos e curtos, procure prolongar a passagem do tempo ou crie situações adequadas para que os personagens tomem determinadas atitudes sem que pareça incoerente.
Como eu sempre digo, convencer o leitor é a base de tudo. E neste processo, precisamos de personagens que sejam tridimensionais, bem trabalhados e com suas atitudes, pensamentos e personalidades desenvolvidas com coerência. Se for criar um comportamento contraditório, faça isto de modo intencional. Quando a contradição acontece sem querer, raramente funciona bem em um texto literário.