Ei, você, que quer escrever literatura! Eu não sei se você também toca piano, mas imagina que hoje mesmo você se depara com um vídeo no Youtube da pianista nipo-sueca Fuzjko Hemming, tocando a tão difícil peça La Campanella, de Franz Liszt. E então você se encanta e decide: eu também quero ser pianista!
Ótimo. Qual seria o seu próximo passo? Imagino que você buscaria por um curso de piano na cidade, um professor particular, um curso online ou mesmo instruções gratuitas em sites e no Youtube. O primeiro passo óbvio da jornada é arranjar um teclado para praticar e aprender a ler partitura, definir dias e horas semanais para a prática.
Quando se trata de piano, essa jornada é óbvia. É difícil uma pessoa que decidiu aprender piano comprar um instrumento, ouvir uma composição qualquer e tentar tocar de ouvido. Vamos supor que você seja ingênuo o suficiente para achar que é fácil assim, então você ouve a música natalina Jingle Bell no piano e tenta imitar sem nunca ter tocado.
Você vai bater as teclas desajeitadamente, produzir um ruído e não a melodia e vai ficar longe do objetivo de tocar a canção, pois não sabe como fazer. Agora vamos analisar toda essa situação substituindo piano por literatura e o aspirante a pianista pelo escritor iniciante.
Contar histórias te deixa fascinado, você lê muitos livros, gosta de escrever e em algum momento da sua vida, decide que quer ser escritor. O objetivo é criar uma obra incrível, o próximo best seller nacional. Você senta com alguns papéis, escolhe um nome para o protagonista, pensa em como será o seu mundo a la Harry Potter, mas original, é claro, e começa a construir.
E então você senta para escrever o seu livro com a mesma coragem do aspirante a pianista que tenta aprender batendo nas teclas sem saber sequer como se lê uma partitura. Você bate no teclado, produz palavras, frases e parágrafos. Mas não tem a consciência de que pode estar produzindo “ruído” e não “música”. O que é óbvio na experiência do pianista, não é óbvio para o escritor.
Eu posso falar com propriedade, pois já fui assim e com o agravante de ser jornalista. Pelo simples fato de ter experiência produzindo matérias eu concluí que já escrevia bem, portanto era moleza fazer um texto ficcional. E não era, eu apanhei desde o desenvolvimento até o aprofundamento de personagens e por fim na construção das cenas. Foram dois anos de tempo e trabalho desperdiçado até eu entender o óbvio: se quero ser escritora, preciso estudar a arte da ficção!
A jornada do pianista e a do escritor
Faz muito tempo que tento entender esse fenômeno que prejudica boa parte dos escritores iniciantes. Por que pensamos em arrumar um professor e aprender a ler partitura se queremos ser pianistas, mas se queremos ser escritores, pensamos que é só sentar e escrever?
Em uma reflexão sobre o meu próprio caso, eu penso que o fato de a escrita, na prática, não passar de palavras em um papel, gerou uma ilusão de que é mais fácil do que realmente é. Há a ilusão de que o escritor tem o dom natural, que basta sentar e escrever para produzir algo interessante.
Mas no caso da melodia, é diferente. A gente sabe que não basta bater nas teclas do piano para produzir música. A gente também sabe que, embora existam pianistas gênios que aprenderam a tocar de ouvido aos 5 anos de idade, há muitos pianistas fantásticos que foram formados pelos anos de estudo e treino.
E no caso dos escritores? Creio que também existam os dois tipos. Há os que produziram um best seller nas primeiras tentativas. Existem as J. K. Rowlings, os Stephen Kings ou Harukis Murakamis que atingiram o sucesso logo que suas obras foram descobertas. Murakami é um dos autores que afirma que não planeja a história, deixa a trama se criar sozinha.
É como eu encher o peito e dizer: nunca aprendi a ler partitura! Eu ouvi La Campanella e sai tocando na primeira tentativa. Isto até poderia ser verdade, mas não me faria mais pianista do que o sujeito que treinou duro e se destacou. Na escrita, uma das minhas inspirações é a Jojo Moyes. Além de ser jornalista, a autora levou 10 anos produzindo obras até atingir o sucesso internacional com o clássico que virou filme, “Como eu Era Antes de Você”.
Foram 10 anos desde que largou a carreira de jornalista para focar na carreira de escritora. Uma década inteira produzindo obras de ficção até que um dia alcançou o grande público. Será que existem mais Jojo Moyes ou J. K. Rowlings por aí?
Escrever literatura e tocar piano: as lições importantes
Trate a sua jornada de escritor como um pianista trata a dele, começando pelo estudo e treino. Não cometa o erro de bater as teclas do piano sem saber ler partitura e por causa do fracasso, concluir que não serve para ser pianista. Vejo isso acontecendo o tempo todo! Escritores que produzem obras enormes com histórias mal elaboradas, não conseguem atrair leitores e acabam achando que não servem para isso.
Qualquer pessoa que queira escrever serve para ser escritor, a arte é democrática. Mas assim como o piano ou qualquer outra arte, exige estudo e prática. Você pode ter alguma habilidade natural ou não, mas isso não é requisito para ser um artista. Expresse a sua alma do jeito que você mais se identifica. Se for pela escrita, ótimo, siga em frente, mas nunca sem buscar conhecimento.
A prática também faz o escritor, assim como faz o pianista! Esses tempos publiquei um texto sobre um pescador japonês que se encantou com Fuzjko Hemming, que citei no início deste texto. Ele ouviu ela tocar “La Campanella” no Youtube e decidiu que ia aprender a composição, que é uma das mais difíceis do piano, de um jeito ou de outro!
O pescador é casado com uma professora de piano, mas nem a esposa botou fé. Emprestou o piano ao marido que nunca tinha tocado nada e o deixou por conta. Ele foi estudar com o Youtube, praticou por anos a fio, fez seu próprio canal, aprendeu a tocar a canção e começou a chamar atenção na internet.
E o resultado? O pescador foi convidado pela própria Fuzjko Hemming para tocar juntos em um recital. Um sonho realizado. (veja mais sobre essa história aqui).
Será que você não é capaz de produzir uma obra literária de alta qualidade com estudo e prática, assim como o pescador, com seus dedos calejados, aprendeu a tocar La Campanella? Aposto que sim, só colocar a mão na massa!